Células-tronco: dilema na hora do parto
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Zero Hora – Porto Alegre, 17/05/2009Esta seção, que estreia no jornal e na internet, tem a intenção de esmiuçar aos leitores assuntos de diferentes áreas. A reportagem inicial trata de uma polêmica envolvendo células-tronco do sangue de cordão umbilical. Se você gostaria de conhecer outros temas a fundo, envie sua sugestão para marcelo.fleury@zerohora.com.br .
A iminência de um filho põe cada vez mais casais diante de um dilema que não encontra consenso na medicina: guardar ou não o sangue do cordão umbilical do recém-nascido, rico em células-tronco adultas.
De tendência no início da década, empresas que armazenam esse material passaram a gerar controvérsia e entraram em rota de colisão com o Ministério da Saúde, que incentiva a doação do sangue para o banco público, chamado Brasilcord. Os bancos privados, porém, prosperam, alicerçados em uma suposição – a de que a decisão dos pais pode salvar a vida de seu filho, no futuro – e duas certezas:
Não dá para esperar.
Só existe uma chance.
Para compreender a polêmica, coloque-se na seguinte situação, e decida:
Seu filho acaba de nascer. O obstetra, ao retirá-lo do ventre, traz com o recém-nascido o cordão umbilical que o nutriu na gestação e cujo destino, obrigatoriamente, é a lata de lixo. Antes disso, uma equipe pode se debruçar às pressas sobre o cordão e a placenta a fim de extrair-lhes – em um intervalo de tempo equivalente ao que você levará para chegar à expressão “tempo esgotado”, neste texto – pelo menos 70 mililitros de sangue.
A quantidade é pequena, mas parece tão preciosa que dois tipos de bancos disputam, no Brasil e no mundo, a primazia de armazená-la: os privados, nos quais o sangue fica à disposição do dono original do cordão – caso ele precise, um dia – e os públicos, de onde pode sair, gratuitamente, para ser injetado no paciente que primeiro necessitar.
Não é o sangue em si que opõe os dois modelos e gera controvérsia no meio científico, mas as células-tronco que ele contém. Elas já foram chamadas de células da esperança, células milagrosas, células que curam. No Brasil, chegaram a ser vendidas em pó – embora não existam desta forma – por charlatães que se aproveitam da ingenuidade e do desespero de pessoas doentes. É provável que a chamada medicina regenerativa, aquela que recupera partes lesionadas do corpo – como um cérebro isquêmico, por exemplo –, valha-se delas futuramente. Mas a única aplicação médica comprovada das células-tronco é mais antiga que Os Embalos de Sábado à Noite, refere-se a doenças sanguíneas, como leucemias e anemias, e costuma atender pelo nome genérico de transplante de medula óssea – que nada mais é do que a retirada de células-tronco da medula de um doador e a injeção delas em um receptor.
O sangue de cordão umbilical é usado como alternativa a esse tipo de transplante, daí que a rede Brasilcord funcione como um complemento ao Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome). E como o uso de células-tronco no tratamento de outras doenças ainda está no campo da experiência, não se preocupe se você não sabe muito bem do que elas são capazes. Pese o esforço em descobrir, a ciência também ignora.
Mas lembre-se:
1) Não dá para esperar.
A ciência pode levar anos para comprovar que as células-tronco podem curar doenças do coração, por exemplo. No Estado, locais como o Instituto de Cardiologia já as utilizam, experimentalmente, em pacientes com doenças cardíacas. Elas são retiradas da medula óssea do próprio paciente e aplicadas na região do coração. Muitos apresentam melhora, embora não se saiba exatamente o porquê. Daí que ainda não se receite células-tronco para esse tipo de doença.
Mas se a ciência não tem prazo para descobrir todos os efeitos terapêuticos das células-tronco, você tem o período de uma gravidez para decidir se irá guardar ou não o sangue do cordão umbilical de seu filho. Se decidir armazená-lo no Rio Grande do Sul, hoje, terá de fazê-lo em um banco privado. Existem menos de 10 no Brasil, e o único gaúcho se chama Hemocord. Fica em Porto Alegre e tem cerca de mil bolsas de sangue estocadas. Cobra R$ 3.600 a coleta e anuidades de R$ 600 para manter as células-tronco em nitrogênio líquido, a -196°C .
Uma de suas proprietárias, a médica especialista em reprodução humana Karolyn Sassi Ogliari, diz o que crê ser sua principal vantagem:
– No banco privado, o sangue é de propriedade do cliente, fica à disposição do doador. No banco público, o sangue será destinado a um terceiro indivíduo, não podendo ser resgatado para o doador. O sangue de cordão pode ser usado, por exemplo, em todos os casos em que é indicado o transplante de medula óssea. Sob solicitação do médico, também pode ser usado para algum tratamento inovador que venha a ser desenvolvido.
A rede pública, apesar de disponível para todos os brasileiros, só estoca o sangue de cordão doado em quatro unidades, todas em Rio ou São Paulo. A partir deste ano, um investimento de R$ 31,5 milhões do BNDES deve integrar mais oito Estados ao Brasilcord. Há anos, o Rio Grande do Sul luta para ser um deles. Em 2004, a jornalista Cristina Ranzolin e o comentarista Paulo Roberto Falcão doaram o sangue do cordão da filha, Antônia, para o banco público, na esperança de que ele ficasse armazenado em Porto Alegre. A bolsa de sangue, porém, está até hoje em Campinas. Com a verba do BNDES – que inclui R$ 3,4 milhões para o banco de sangue do Hospital de Clínicas –, o braço gaúcho da rede deve enfim se tornar realidade. A responsável pelo projeto no Estado, Liane Röhsig, chefe da unidade de criobiologia do Clínicas, é crítica ferrenha da alternativa privada:
– É muito duro acompanhar a luta de famílias que correm contra o tempo e precisam desesperadamente encontrar um doador de medula para seu familiar. Sob este olhar, todo cordão umbilical armazenado em banco privado é uma chance a menos de se achar um doador.
O objetivo do Brasilcord é chegar a pelo menos 50 mil bolsas de sangue de cordão armazenadas. A quantidade e a variedade devem ser suficientes para contemplar as características genéticas brasileiras. Aliado ao Redome, que hoje tem quase 1 milhão de doadores cadastrados, a rede aumentaria a possibilidade de alguém com leucemia achar um doador compatível.
Mas também existe uma chance, ainda grande no Brasil, desse paciente jamais encontrar um doador. Se tiver mantido o sangue do cordão estocado e for usá-lo em si mesmo, é certo que não haverá problemas de compatibilidade. A maioria dos médicos, no entanto, não aconselha esse tipo de transplante – chamado autólogo – porque as células estariam programadas geneticamente para desenvolver de novo a doença.
Apesar disso, a proprietária do Hemocord, Karolyn, diz que o transplante autólogo pode servir como paliativo enquanto o paciente procura um doador compatível em um banco público ou no Redome, “o que leva em média de quatro a seis meses”. Entre um transplante autólogo ou nenhum transplante, também é melhor a primeira alternativa, embora a literatura científica registre menos de cem casos no mundo de uso do sangue do cordão umbilical por seu próprio dono.
Pesquisadoras como Nance Nardi – professora do departamento de Genética da UFRGS e coordenadora do Centro de Pesquisas com Células-Tronco e Terapia Gênica da Ulbra – engrossam a fila dos críticos dos bancos privados. Para começar, ela explica, estudos mostram que a chance de alguém precisar usar o sangue de seu próprio cordão umbilical para alguma das atuais doenças sanguíneas tratadas com ele é de uma em 20 mil:
– Sou absolutamente contra banco privado. Primeiro, não há indicações de uso, por uma pessoa, de suas próprias células-tronco em doenças de origem genética. Segundo, as células-tronco com maior potencial para tratar doenças no futuro são as mesenquimais, presentes em bom número na medula óssea, mas não em boa quantidade no cordão umbilical.
Chefe do Laboratório de Hematologia e Células-Tronco da Faculdade de Farmácia da UFRGS, Patricia Pranke vai além:
– Se para a leucemia não é bom usar as próprias células-tronco e para outras doenças, futuramente, dá para retirá-las da própria medula óssea, então por que pagar para guardar as do cordão?
Mas quem defende o modelo privado tem outros argumentos. As empresas que o armazenam dizem que o sangue do cordão pode servir para um parente compatível, como um irmão, apesar de reiterarem que isso demandaria uma decisão judicial. É que uma resolução de 2004 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe que bancos privados destinem o sangue para outra pessoa que não o dono original do cordão. Como os transplantes de células-tronco com maior chance de dar certo são os que ocorrem entre parentes, quando há compatibilidade, a norma é considerada absurda por uma das mais famosas cientistas do país, Lygia da Veiga Pereira. Geneticista da USP, ela obteve, há meio ano, a primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias.
– Essa norma da Anvisa é uma besteira. Pelos registros internacionais, 80% dos transplantes feitos com sangue guardado em bancos privados ocorrem entre irmãos. Se alguém, com um irmão doente, tiver um sangue de cordão em um banco privado, e esse sangue for compatível, acabarão dando um jeito de viabilizar esse transplante – afirma a cientista.
No meio da polêmica, Lygia forma uma terceira vertente: a dos que acreditam que o banco público de sangue de cordão pode muito bem conviver com os bancos privados, já que há no Brasil, por ano, mais de 3 milhões de partos .
E um banco público não teria capacidade ou sequer necessidade de guardar tanto sangue assim. Ela compara:
– É como SUS e convênios. Todo mundo tem acesso ao SUS, mas quem quiser pode pagar um plano privado. O banco privado de cordão é como um seguro de saúde no qual você paga para ter direito a resgate de helicóptero. Vou pensar: quando é que vou precisar de um resgate de helicóptero? Provavelmente nunca. Por outro lado, se precisar, é porque a coisa está feia. E aí cada um vai resolver essa equação de acordo com seus critérios de preocupação e capacidade financeira.
Ao decidir guardar o sangue do cordão de sua filha, Nina, hoje com três anos, no Hemocord, o deputado Beto Albuquerque (PSB) não imaginava que outro filho, Pietro, desenvolveria leucemia. Por causa da resolução da Anvisa, se Nina fosse compatível com Pietro o deputado teria de recorrer à Justiça para poder usar as células-tronco dela no filho. Como não era, não foi preciso. Pietro recebeu, via SUS, o transplante de células-tronco do sangue de dois cordões, vindos de bancos da França e dos Estados Unidos. Eram o que havia de mais compatível. Mas não deu certo, e o jovem morreu há três meses, aos 19 anos. Consternado, o deputado transformou a dor em luta, e passou a estimular cada vez mais o banco público.
– Eu podia não ter guardado o sangue do cordão umbilical da minha filha, mas guardei e tive de pagar por isso. Se já tivesse a opção, na época, colocaria o cordão dela em um banco público, que serviria para ela ou para outros, o que é muito mais natural. O banco público é mais racional, porque serve a todo mundo – diz Albuquerque.
A médica Felícia Tavares tem outra opinião. Já se passaram quatro anos desde que ela e o marido decidiram guardar o sangue do cordão de seu filho Otto. Felícia está grávida de novo e vai repetir o procedimento com o próximo.
– Dizem que é caro pagar R$ 600 por ano. Mas quanto se gasta numa festinha de aniversário? – questiona.
Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), ligado ao Ministério da Saúde, “armazenar o sangue do cordão em um banco privado é uma aposta num futuro que a ciência ainda não comprovou”. Mesmo assim, a apresentadora Fernanda Lima, mãe de gêmeos, decidiu apostar nesse futuro, e guardou o sangue do cordão deles no Hemocord.
– O procedimento traz uma segurança absurda para a mãe. Quando alguém te garante que estão sendo feitos estudos e que algumas doenças poderão ser tratadas com o sangue do cordão, na verdade não tem por que não guardá-lo – diz.
Tempo esgotado.
Na sala de parto, a equipe destacada para retirar o sangue do cordão umbilical de seu filho não poderá ter demorado mais do que o tempo que você levou para ler este texto até aqui, ou o sangue haverá coagulado e a coleta terá sido comprometida. Lembre-se:
2) Só existe uma chance.
Não há prazo para o fim do debate ou para a ciência finalmente descobrir do que as células-tronco são capazes. Mas porque ninguém nasce duas vezes, você só tem uma oportunidade de coletar o sangue do cordão de seu filho. E, a partir do ano que vem, no Rio Grande do Sul, dois destinos para dar a ele.
Qual sua decisão?
marcelo.fleury@zerohora.com.br
MARCELO FLEURY
ZERO HORA.com
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Outros países:
ESTADOS UNIDOS
Tem banco público e bancos privados, para uso do dono do cordão ou de sua família
FRANÇA
Não permite bancos privados. O sangue de cordão é considerado um recurso nacional
ESPANHA
Até 2006, não permitia bancos privados. O tema virou polêmica quando o príncipe Felipe decidiu guardar o sangue do cordão da filha em um banco privado nos EUA. Em novembro de 2006, os bancos privados foram liberados, mas sob uma legislação que autoriza a apropriação do sangue em caso de necessidade pública
ARGENTINA
O governo nacionalizou no mês passado os oito bancos privados. A partir de agora, casais que guardarem neles o sangue do cordão do filho saberão que o material também ficará à disposição da rede pública. Os bancos privados estão recorrendo à Justiça
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